quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Conversa com Lucia Helena Azevedo

Há pouco mais de um ano, tive a oportunidade - e o imenso prazer - de conhecer pessoalmente a atriz/ diretora/ dubladora Lucia Helena Azevedo, uma das profissionais mais gabaritadas e conhecidas da dublagem paulista. Ao lado dos amigos Vitor Souza e Yuri Calandrino, nos encontramos na hora do almoço, e pudemos conversar um pouco sobre a dublagem de um modo geral.

Lucinha foi extremamente gentil e atenciosa, doando seu tempo por algumas horas e contando coisas muito legais sobre sua carreira na dublagem, e pessoas que conheceu durante a vida profissional.

Como o foco deste espaço são as séries japonesas dos anos 80 e 90, estarei transcrevendo praticamente todo o bate papo focado nesse tema, respeitando ao máximo a oralidade, assim como fiz quando conheci a Christina Rodrigues. Vamos ao que interessa:


Quando você começou a carreira na dublagem? É possível Lembrar o ano, quem foi o diretor, o estúdio e o personagem?

Comecei a dublar com 12 anos. Hoje tenho 54, então foi em 1971, certo? Minha mãe, Yolanda Cavalcanti, era dubladora e trabalhava bastante na A.I.C. Tivemos uma vida bem pobre, e quando eu saia da escola, ia direto para o estúdio me encontrar com ela, e almoçávamos juntas numa venda que tinha lá perto. Um dia, o Nelson Baptista nos viu e disse que queria que eu fosse com ele fazer uma gravação. Relutei, pois tinha vergonha, e ele insistiu tanto que acabei indo. Era a série O Elo Perdido, onde ele fazia o menino, o Gilberto Baroli o pai, e eu a irmã. Fiz essa série inteirinha com ele me dirigindo diretamente na bancada. Depois, a informação de que eu estava dublando espalhou-se e chegou até a Cine Castro, então o Silvio Navas me chamou pra fazer um dos primeiros animes, eu acho, e o nome era Guzula. Fazia a amiga do monstrinho, a principal da série, e era muito gostoso fazer. Foram séries importantes com pessoas importantes no meio. Dublei também vários filmes na época, mas esses dois marcaram mais por serem os primeiros.


Em todos esses anos de carreira, qual o trabalho que mais exigiu de você, seja ele na direção ou na dublagem?

Ao longo desses anos todos, foram tantos trabalhos importantes que fica difícil citar um só. Mas teve um filme, que infelizmente eu não lembro o nome, mas era uma mulher que era surda e tinha dificuldade pra falar. Ela era a protagonista e falava o tempo todo, ria, chorava, tudo com muita dificuldade, era quase como se tossisse quando falava. Ela era muito intensa, muito emocional, enfim, foi muito trabalhoso fazer, e foi um desafio que motivou elogios, inclusive da própria emissora que exibiu o longa metragem. Todos os colegas que assistiram elogiaram. Já faz muito tempo, mas marcou. Vou citar um outro, que também exigiu muito de mim e é mais recente: GLEE, onde dublei a Sue Sylvester. Foi legal de fazer, e foi um trabalho importante. Na direção, há alguns anos dirigi o PRISON BREAK inteiro, que exigiu muito de mim, me envolvi ao extremo e tentei fazer da melhor forma possível, me preocupando muito com a amarração da historia de cada um. Ambos foram na DublaVideo.


Como foi a época das séries japonesas, iniciada em 1986 e finalizada em 1995? Havia testes para os personagens fixos ou simplesmente a escalação, baseado no conhecimento que o diretor tinha da capacidade de cada ator?

Foi exatamente neste período que cheguei na Álamo. Nunca havia dublado neste estúdio enquanto o prédio era na Major Sertório, só depois que mudou pra Rua Fidalga. Comecei fazendo algumas pontas no Jaspion e Changeman, dentre outras coisas, até chegar o dia em que o fui presenteada com a Sara/ Yellow Flash. Sim, a escalação era sempre segundo o feeling do diretor, que era o saudoso Líbero Miguel na época.



Seus primeiros trabalhos nesse gênero de série foram a Sáti e a Kanôko em Jaspion, e a Áira e Nâna em Changeman. Em seguida vc protagonizou Flashman, fazendo a Sara/ Yellow Flash. Como foi fazer a personagem numa das melhores dublagens na opinião dos fãs até hoje?

Sempre digo que a personagem que mais gostei de fazer foi a Sara, de tudo que fiz até hoje. Isso por que naquela época, éramos uma equipe muito unida, todos jovens, e que estávamos adorando dublar aquilo. Gravávamos todos juntos no estúdio 03 da Álamo, e nos divertíamos demais. As vezes um de nós errava, e tínhamos que fazer tudo de novo, daí o Líbero entrava “bravo” no estúdio e eu abraçava ele e acabávamos todos rindo. Até o seu Michael Stoll, dono da empresa, que era mais sério acabou se divertindo.


Depois do sucesso como Yellow Flash, vieram outros personagens eternizados pela sua voz, na sequência: Shinobú em Lion Man (Laranja); Ágnes e Janne em Jiraiya; Yôko em Jiban; Saôri em Lion Man (Branco); e várias pontas em Metalder e Sharivan. Recorda-se da Yôko e da Shinobú?

Lembro sim, mas no caso da Yôko, ela aparecia menos, pois o principal era o Jiban, personagem do meu querido e saudoso Carlos Laranjeira.



Você se lembra de algum fato curioso dos bastidores na época das gravações?

Lembro de nos divertirmos muito, o Brêtas era animado, o Camarão era um pouco mais reservado, mas também brincava, o Laranjeira maravilhoso e a Christina que sempre foi minha amiga, um doce. No fim do dia, depois de todas as gravações, íamos quase todo mundo para um barzinho descontrair. Isso acontecia com freqüência. Quando acabamos de fazer o Flashman, o Líbero e o seu Michael reuniram o elenco todo, e disseram que aquele era o melhor trabalho que tinham feito, mas porque tinha sido feito ali e com aquelas pessoas. Todos choramos e nos abraçamos, emocionados.

Fale um pouco sobre Líbero Miguel e Carlos Laranjeira, profissionais brilhantes que participavam frequentemente dos seriados, e que protagonizaram personagens ímpares durante suas carreiras.

Líbero foi como um pai pra mim. Adorava ele e senti muito quando partiu. Na minha opinião, nesta época, ele foi o maior e melhor diretor da história da dublagem, insubstituível, maravilhoso caráter e extrema competência. Amo ele onde quer que esteja.

Já o Laranjeira, foi o irmão que não tive. Conheci ele neste período, e nos tornamos amigos inseparáveis. Ele era uma pessoa muito honesta, leal, amigo, bondoso, humano, simples, risonho, e muito bonito por dentro e por fora. Adorava tomar sol, mesmo se fosse no topo do prédio onde morava. Não tinha vício nenhum, e adorava tomar suco natural, e eu acompanhava, sempre depois de dublar. Cantava divinamente, e a música predileta dele era “Paz do meu Amor/ Menino Passarinho”, que acompanhava tocando seu violão. No começo de 1991 ele ficou doente, afastou-se da dublagem, e foi morar em Santos com a família. Ficou vivendo lá, com uma das irmãs, onde continuou trabalhando com arte. Eu ia e voltava todos os dias para visitá-lo, e fiquei ao lado dele até o fim. A tristeza pela sua partida foi tanta que fiquei uma semana sem trabalhar. Até hoje sinto a falta dele. O vazio que ele deixou continua dentro de mim. Nunca mais a dublagem foi a mesma desde que eles se foram. Não existem mais pessoas como eles.


Outros grandes profissionais marcaram nossas vidas dublando inúmeros heróis e vilões, mas não existe quase nenhuma informação sobre eles, alguns nem mesmo uma só foto. Poderia nos contar algo?

Agora você já tem as fotos do Gastão Malta e do Ricardo Medrado. Gastão era uma pessoa séria, não gostava muito de brincadeiras, mas comigo sempre foi carinhoso, até porque já me conhecia desde pequena por causa da minha mãe. Marcos Lander tinha um humor fantástico, coisa que é difícil explicar. Era uma pessoa que brincava com tudo, sem baixar o nível e debochar, de bem com a vida. Era cativante. A Sônia Regina foi uma das minhas melhores amigas na época. João Paulo era o galã da dublagem, com aquela voz maravilhosa, tinha cabelos meio longos e usava bigode. Alguns atores de cinema só ele fazia. Ricardo Medrado era um jovem que andava de moto e usava roupas escuras. Curtia rock, e sempre usava óculos escuros. Tinha personalidade forte, mas era muito engraçado, descolado e inteligente. O Líbero gostava demais dele. O Nelson Baptista foi um dos diretores mais exigentes que conheci, pra ele não tinha meio termo, ou estava ótimo, ou estava péssimo. Aprendi muito com ele.


O que tem feito atualmente? Seja na dublagem, direção ou outros projetos? No caso de direção, em qual estúdio?

Até uns 3 anos atrás eu dublava frequentemente e dirigia na DublaVideo em tempo integral. Mas começou a ficar exaustivo demais, e acabei recebendo um convite da Tempo Filmes para dirigir apenas meio período, e acabei aceitando. Atualmente estou fazendo direção na Vox Mundi e na Centauro, intercalando direção e dublagem ao longo dos dias. São pouquíssimos estúdios de São Paulo que eu não trabalho.


Deixo aqui registrado meu muito obrigado à Lucinha, que realizou mais um dos tantos sonhos da minha vida quando se diz respeito a dublagem: o de poder encontrá-la pessoalmente e ouvir a sua voz - que pela vida toda acompanhei pela TV - saindo diretamente de sua boca. Foi emocionante e marcante para mim, e jamais esquecerei este dia. Longa vida e saúde para o sinônimo de voz das moças de olhos puxados nos anos 80 da Álamo!